O que ver. Horas após a conclusão da cimeira Celac-UE, que emitiu uma declaração expressando profunda preocupação com a guerra Rússia-Ucrânia, mas não condenando a invasão de Putin, Lula confrontou um presidente de esquerda como Boric em termos incomuns.
- “É importante que da América Latina digamos isso claramente. O que está a acontecer na Ucrânia é uma guerra de agressão imperial, inaceitável, onde o direito internacional está a ser violado. E eu entendo que a declaração conjunta está presa hoje porque alguns não querem dizer que é uma guerra contra a Ucrânia “, disse Boric no plenário da cimeira.
- Pelo contrário, Lula chegou a Bruxelas apostando em estabelecer-se como um líder global e com a ideia de não condenar a Rússia, como queria a UE, que foi derrotada nessa posição.
O que disse Lula. Numa conferência de imprensa na Bélgica, Lula disse na quarta-feira que Boric tinha “um pouco mais de ansiedade do que os outros” líderes que participaram na cimeira entre a União Europeia (UE) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), e que por isso criticou as dificuldades de alguns países latino-americanos em condenar a invasão russa da Ucrânia na declaração final da reunião.
- “Possivelmente, porque deve ter sido a primeira reunião de Boric da União Europeia com a América Latina, ele tem um pouco mais de ansiedade do que os outros. É só isso”, declarou Lula.
- “Todos nós sabemos o que a Europa pensa, todos nós sabemos o que está acontecendo entre a Ucrânia e a Rússia. Todos nós sabemos o que pensa a América Latina. Eu não tenho que concordar com Boric; é a sua visão”.
- “Possivelmente, a falta de hábito de participar nestas reuniões faz com que um jovem tenha mais pressa. Mas é assim que as coisas acontecem. A reunião foi, do meu ponto de vista, extraordinária. Do meu ponto de vista, foi a reunião mais madura em que participei entre o Mercosul e a União Europeia, entre a América Latina e a União Europeia”.
- Lula, provavelmente aludindo a Boric, terminou dizendo que no seu primeiro ano como presidente, no seu primeiro mandato, foi a uma reunião do G8 para a qual “fui convidado num avião e queria que tudo fosse decidido naquele momento”. A cimeira UE-Celac, acrescentou, foi um debate sobre “a visão de 60 países”.
Cenário. Apesar de Boric ter sido um dos poucos líderes latino-americanos que não alinhou com a posição promovida por Lula em Bruxelas, o tom usado pelo líder brasileiro não passou despercebido a quem o conhece.
- A leitura obrigatória entre eles é que, ao visar a inexperiência de Boric, um dos seus flancos internos, Lula estava a ajustar contas com ele.
- A principal delas ocorreu no final de maio, quando convocou 11 líderes sul-americanos para uma reunião em Brasília. Oficialmente, o encontro tinha como objetivo reavivar o bloco Unasul, mas como pano de fundo procurava reafirmar a sua liderança no continente e recuperar a influência do seu país na Venezuela.
- A cimeira de líderes, aliás, foi precedida de uma visita oficial de um dia de Maduro ao Brasil, onde foi recebido por Lula, que não só defendeu o regime chavista e lhe concedeu o estatuto de democracia, como também salientou que as críticas às violações dos direitos humanos e ao autoritarismo faziam parte de “uma narrativa”.
- “Eu declarei respeitosamente que tinha uma discrepância em relação ao que o presidente Lula disse no sentido de que a situação dos direitos humanos na Venezuela era uma construção narrativa”, disse Boric depois de participar na reunião. “Não podemos fechar os olhos a questões que para nós têm princípios e são importantes”.
- Uma versão que circulou durante esses dias em Brasília foi a de que Boric teria dito a Lula em particular, com antecedência, o que iria dizer no plenário, o que teria tranquilizado a chancelaria chilena. Mas, aparentemente, os dois líderes não voltaram a se falar depois do ocorrido, o que deixou um gosto amargo entre alguns diplomatas.
- Nessa altura, segundo a mesma versão, houve alguma desilusão na comitiva de Lula por considerarem que faltou entusiasmo a Boric para retomar a Unasul e para uma ação concertada com a América Latina.
- Mas, sobretudo, porque alguns membros do círculo do presidente brasileiro consideravam que ele estava a desempenhar um papel funcional para os EUA a partir da esquerda. De facto, os comentários feitos pelo embaixador Juan Gabriel Valdés em março deste ano, durante um painel na cimeira SAFe 2023 em Washington, chegaram a Brasília. Na ocasião, Valdés sugeriu que o parceiro estratégico do Chile eram os EUA e não a China, o que causou mal-estar na diplomacia do país.
- Apesar disso, o excessivo entusiasmo de Lula por Maduro na cimeira de Brasília, ao ponto de qualificar o seu regime como democrático, desencadeou uma série de críticas internas e externas a Maduro. Boric, por exemplo, foi acompanhado pelo uruguaio Luis Lacalle.
- Segundo o analista brasileiro Oliver Stuenkel, o que aconteceu em Brasília foi “mais prejudicial para a reputação do governo brasileiro do que tudo o que Lula disse ou fez até agora”.
- As declarações de Lula em Bruxelas, para alguns, não foram mais do que uma forma – quer ele quisesse ou não – de acertar as contas que tinha com Boric.
Atenção. Falando à BBC como Presidente eleito, Boric disse que esperava “trabalhar lado a lado com Lucho Arce na Bolívia, se Lula ganhar as eleições no Brasil com Lula, a experiência de Gustavo Petro se ele se consolidar na Colômbia. Penso que podemos construir aí um eixo extremamente interessante”. Para alguns, os laços com Petro não são duvidosos, como o são com Lula e Arce, com os quais não foram alcançados acordos consistentes em termos de migração.