Um tweet foi o detonador do escândalo de exploração sexual de menores que abalou o Uruguai e que, na quarta-feira, levou à destituição de um importante senador pró-governamental, Gustavo Penadés.
“Num vídeo vou falar de um pedófilo que temos na política há 30 anos”, Romina Celeste Papasso, uma activista trans do mesmo partido político de Penadés, anunciou nas redes sociais em Março. “Quando eu tinha apenas 13 anos, ele costumava ir buscar-me ao Parque Batlle e levar-me para o motel, ele gosta de crianças”.
Papasso, actualmente com 30 anos, evitou nomear Penadés nessa mensagem. Mas mais tarde identificou-o publicamente e afirmou que ele foi o primeiro homem a pagar-lhe por sexo, antes de ela iniciar a sua transição de género.
Penadés, 57rejeitou imediatamente a acusação e negou ter cometido qualquer crime.
O presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, disse logo que a acusação surgiu que acreditava em Penadés, que ele conhece há três décadas como um membro do Partido Nacional, de centro-direita que ele lidera. “Seria um mau amigo se não acreditasse nele”, disse mais tarde à imprensa.
Mas, na sequência das alegações de Papasso, a Procuradoria Geral da República lançou uma investigação ex officio na qual pelo menos oito vítimas testemunharam terem sido exploradas sexualmente por Penadés quando eram menores, relata o pedido desafuero.
E os pormenores do caso que agora vêm a lume são perturbadores para um país que costumava encarar escândalos deste tipo como algo estranho.
O relatório do Procurador
O procurador uruguaio de crimes sexuais que investiga o caso, Alicia Ghione, indicou que Penadés é alegadamente acusado de pagar a adolescentes “por actos eróticos e sexuais”.
Dos oito queixosos, a maioria tinha 13 ou 14 anos de idade na altura do abuso, O documento de Ghione ao Parlamento, a que a BBC Mundo teve acesso, afirma. Outros tinham 15 e 16 anos de idade.
“Em todos os casos são ou foram menores e rapazes”, afirma. Acrescenta que as vítimas provêm de “contextos sociais muito vulneráveis” e que várias delas ainda são menores.
Lacalle Pou: o presidente uruguaio apoiou o seu “amigo” Penadés quando o escândalo rebentou.
“Num caso antigo, a vítima era apenas uma criança de uma equipa de futebol que o próprio Penadés organizou quando ainda era adolescente”, conta.
O procurador salienta no texto que o modo de actuação de Penadés “se mantém ao longo dos anos”.
“A partir dos depoimentos obtidos, foram identificadas formas semelhantes de convencer os adolescentes a aceitarem ter actos sexuais, como aceder aos seus corpos, fazê-los despir-se, beijá-los, tocá-los, pedir-lhes que o ‘masturbem’ e lhe façam ‘sexo oral’, para finalmente, em alguns casos, conseguir algo mais”, afirma.
Acrescenta que, nalgumas ocasiões, houve “acções violentas para forçar ‘sexo oral’ ou ‘penetração sexual'”.
O documento inclui excertos integrais dos testemunhos apresentados ao Ministério Público.
Num deles, a vítima recorda que, quando se encontrou com Penadés, lhe disse que era menor de idade, mas ele respondeu-lhe: “Se há pêlos pequenos não há crime”.
O Senado uruguaio votou por unanimidade o levantamento da imunidade de Penadés.
Noutro testemunho, o queixoso afirma que Penadés lhe indicou que o poderia ajudar a encontrar trabalho.
Ghione disse aos deputados que algumas vítimas testemunharam que um professor de História, que também está a ser investigado, actuou como “recrutador” ou “intermediário” do político junto dos menores e foi pago para desempenhar esse papel.
A acusação tinha identificado pelo menos quatro outras vítimas aquando do pedido de destituição de Penadés, mas advertiu que estas evitaram testemunhar “por receio do ‘poder’ do arguido” ou “por terem recebido ameaças alegadamente do arguido”.
As consequências
Tendo em conta as informações fornecidas pelo procurador, o Senado uruguaio aprovou na quarta-feira, por unanimidade, o desafuero de Penadés, que tinha pedido celeridade no processo para poder responder à justiça.
“Não me arrependo de nada porque não cometi nenhum crime”, Penadés disse sucintamente à imprensa depois de ter testemunhado no Ministério Público no mês passado, ainda protegido pelos seus privilégios legislativos.
Penadés rejeitou as acusações que lhe foram feitas.
Anteriormente, quando o escândalo veio à tona, Penadés manifestou orgulho na sua “orientação sexual” e negou que pudesse ser acusado de pedofilia por esse facto.
Papasso disse que denunciou Penadés este ano porque se lembrava dos encontros que teve com ele quando o senador criticou um protesto seu contra a visita do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva a Montevidéu, que terminou com a detenção e condenação da senadora por agressão depois que ela cuspiu em um funcionário municipal.
Penadés também se demitiu do Partido Nacional e alguns opositores advertem que, com a sua queda, o governo perdeu um interlocutor fundamental.
“Curiosamente, Penadés no Senado era a melhor representante do governo, com quem era possível manter um diálogo de alto nível”, disse o ex-presidente José “Pepe” Mujica e evitou julgar o caso.
Outros membros da esquerda criticaram Lacalle Pou e o ministro do Interior, Luis Alberto Heber, por terem apoiado Penadés quando surgiram as acusações contra ele.
José Mujica: o ex-presidente uruguaio disse que via o caso envolvendo Penadés com “dor”.
Nos últimos dias, o presidente pareceu qualificar a sua posição em relação a Penadés. “As acusações são muitas (e) pelo que pude apurar, são graves”, disse na sexta-feira.
Enquanto se aguarda a conclusão do inquérito e a decisão da justiça, o caso deixa, para já, várias questões em aberto.
Uma delas é saber se o Uruguai protege adequadamente os seus menores do perigo de abuso sexual.
Os casos de exploração sexual de crianças e adolescentes mais do que duplicaram desde 2019, quando foram registados 240, para um recorde de 529 no ano passado, de acordo com a comissão encarregada de os erradicar.
Outra questão é como, num país pequeno onde se diz frequentemente que “toda a gente conhece toda a gente”, Penadés esteve na cozinha política durante tanto tempo sem que surgissem as alegações que agora enfrenta.
Este escândalo, como outros recentes, poderá ter um custo eleitoral para a coligação governamental e, sobretudo, para o Partido Nacional, diz à BBC Mundo o politólogo Adolfo Garcé.
Mas ele alerta que há também o risco de erosão de uma democracia que, apesar de ser considerada a melhor da região, sofre de “problemas de todos os tipos”, desde institucionais até de ética política.
“O mais importante em termos políticos é saber até que ponto este casopara além de outros casos que ocorreram neste governo e também em governos anteriores, acaba por minar a credibilidade da opinião pública na democracia e nos partidos”, conclui.
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